Refluxo Narcísico

Numa pequena casa de vila, num lugar escondido da cidade, sento-me enviesado no sofá, de forma a observar o rico jardinzinho. Um gnomo em pedra pintada insiste em não se mover. Há musgo em seu chapéu vermelho, é o jardim que o convida a ser parte de um todo, ao qual responde silenciosamente “sim”. O tempo não conta, sequer para mim, do lado de cá do vidro, há menos de metro deles.

Uma presença me inspira a olhar para trás, e quando vejo, é minha cadela que sobe no sofá, apóia seu focinho em minha perna e respira profundamente, fechando os olhos, sob a certeza de que agradarei sua cabeça. O faço e deixo de olhar, entregue à sensação de acariciar o ser amado e que a mim só tem amores. Algo me perturba, me compele para longe. Passo a me concentrar involuntariamente na luz que entra dessa janela outra, aberta desde a noite para que me ajude a despertar a luz solar. O aparelho infernal toca um bipe progressivamente mais rápido e alto. Faz frio. A imagem de minha falecida amada luta por espaço em meu mundo, o gnomo desesperado clama por meu nome. Sinto saudades. O tempo aflito volta a contar. Peço à providência divina mais cinco minutos, e aperto o botão.

Questão de segundos ou milênios e sou novamente um. Quem me acolhe dessa vez são as personagens dos universos virtuais que freqüento em estado de vigília parcial. Um ambiente de jogos, em que o gozo independe do sucesso ou da derrota. Dali para a conversa com meu pai sobre meu hábito de fumar é um pulo imperceptível. Cabe ao cigarro a única esperança de suicídio, e pela tristeza projetada de meu pai, me acomete a mais profunda vergonha; mas sinto; vivo.

Novamente o despertador soa; passaram-se cinco minutos. Faço as contas rapidamente para inevitavelmente concluir que compensa apertar novamente o snooze. De um lado a vivacidade do sonho, sua beleza inerente, a segurança, o conforto e a felicidade de vivê-lo. Do outro, já posso ouvir o barulho incessante e o ritmo frenético da responsabilidade e da cobrança, da pressão aflita e da necessidade de existir; da grotesca interação humana, as opiniões tão divergentes e mutuamente alienadas, o cheiro hipócrita da individualidade, a pútrida falsa alteridade.

Afinal, o que são mais cinco minutos?